sábado, 10 de dezembro de 2011

Mobile Revolution

Mobile revolution

“A revolução não será televisionada”. Frase impactante, reproduzida por lideranças de esquerda, libertários, ecoou nas vozes do líder zapatista, o

subcomandante Marcos, no rock enérgico do Rage Against the Machine, no maracatu psicodélico de Chico Science & Nação Zumbi. O que poucos sabem é que a frase

foi registrada em 1971 por Gil Scott-Heron, em uma de suas letras:

“You will not be able to stay home, brother.
You will not be able to plug in, turn on and cop out.
You will not be able to lose yourself on skag and skip out during commercials,
Because the revolution will not be televised”
Scott-Heron, este negro que foi um ancestral do rap norte-americano, trazendo a margem da sociedade para suas letras antecipou algo que podemos não só ver,

mas sentir nos tempos digitais em que vivemos. Realmente a revolução não vai passar na TV. Não só porque esta mídia tem o imenso poder de anestesiar mentes

com sua realidade paralela, imobilizando ao invés de mobilizar, mas porque a TV já não mais satisfaz. E já diziam os Titãs, que a TV nos deixou burros,

muito burros demais. Agora não mais. A revolução móbil, ou móbile revolution já está em curso. A passividade televisiva está sendo superada pela

multiplicidade mobile. A TV deforma mentes, o potencial do mobile pode mobilizar (com o perdão do pleonasmo), e revolucionar em tempo real.
Imaginemos que ao invés de realizar check-ins em cada local em que vão, que os seres da sociedade virturreal utilizassem esta tecnologia de outra

forma. Imaginem os hackers invadindo Ipads, Iphones e Blackberrys de corruptos, colhendo suas falcatruas e disparando nas redes sociais. E a partir daí todos

fizessem check-in na porta da casa do sujeito, em um flash-mob à lá caras-pintadas. Imaginemos o compartilhamento em tempo real da indignação! Alguma mulher

começa a ser violentada e dispara a informação. Em poucos segundos alguma boa alma que está próxima pode ajudá-la. E se um policial tenta uma extorsão? Pelo

reconhecimento de voz a informação é disparada por algum dispositivo móvel, e em segundos o policial se vê cercado de policiais de verdade. E assim o efeito

cascata. A tecnologia não cria soluções nem problemas, mas sim o homem que tem esta capacidade.
Resta-nos a escolha. Continuar deformando nossos sofás e anestesiando o cérebro em frente à TV, continuar explorando 1% do bo(o)m potencial digital,

ou... Desencadear a mobile revolution.



sábado, 3 de dezembro de 2011

Antropofagia da web




             Sim, sim, estamos cansados de saber que somos bombardeados de informações a cada segundo que nos conectamos ao mundo da web. São tantas possibilidades, tantas opções de pesquisa, tanto conhecimento útil e inútil acumulados nos servidores da rede, que o mais comum é perdermos o foco e não absorvermos essa potencialidade de cultura que nos é oferecida. O imenso volume de informação, salvando raros casos, não se traduz em um aperfeiçoamento da formação de intelectos humanos. Mas o poder de disseminação da rede, ou agora da nuvem que armazena informações (vide o último legado de Jobs, iCloud), representa uma possibilidade revolucionária  para a democratização do conhecimento. Assim como em seus períodos históricos várias invencionices do bicho-homem também representaram – ainda que não o tenham efetivado – esta possibilidade: o surgimento do livro impresso permitiu ao homem registrar suas memórias, histórias e trilhar a fantasia literária, os jornais permitiram uma conexão entre lugares antes distantes, através da divulgação de notícias dos quatro cantos do planeta;  o rádio, através de suas ondas eletro-magnéticas conectou países inteiros, como no Brasil todos paravam para ouvir os discursos de Vargas; a televisão e o cinema levaram o mundo aos olhos de quem vê. Contra todo o evolucionismo, nenhuma dessas modernidades representou efetivamente um aperfeiçoamento da formação humana, portanto, não podem se assumir como instrumentos efetivamente democráticos, a não ser pelos sedutores discursos que abusam do marketing-histórico. Definitivamente não. A oligarquia informacional, o elitismo do acesso à cultura permaneceram até então intocáveis, salvo honrasas e louváveis exceções. Pero, no debemos perder la ternura jamas. A teia digital, antropofagicamente pode representar a via utópica de um conhecimento realmente democrático. Ufa.
                Esmiucemos a frase acima. Primeiro elemento – antropofagizar a teia digital. Na esteira dos ensinamentos de Oswald de Andrade – e de toda a geração modernista – a antropofagia consiste no ritual de ingerir o inimigo para dele aproveitar o que há de melhor e descartar o restante. É o antigo ritual indígena, do guerreiro que prefere morrer honradamente e ser devorado pelo inimigo, a ser preso. A web pode ser um inimigo, se mal utilizada. Se a devorarmos no ritual antropofágico, descartaremos aquelas características que podem a tornar um risco à humanidade: hiper-exposição, lobotomia dos usuários, manipulação, falta de qualidade da informação, pornôs-grafias, pedos-filias, e toda a sorte de maldades que estão mais no homem do que na rede. E ao finalizarmos a digestão da web, absorveremos seu potencial disseminador, sua capacidade de armazenamento e agilidade de transmissão de conhecimento. Pronto, uma bela refeição antropofágica da web termina. E começa a entrar em jogo a via utópica representada por este canibalismo digital.
                Utopia é o não lugar, é o que ainda não existe, é sonho, é esperança. A via utópica de transformação da realidade pressupõe pensar o que ainda não foi formulado, imaginar um outro possível. Depois do jantar, é hora de sonhar E agir. Utopia é ousar subverter a ordem. Utopia é pensar a web contribuindo para a democratização do conhecimento, na teia dos relacionamentos instantâneos do mundo virtual, hão de surgir seres críticos, que hão de utilizar o conhecimento para transformar a realidade. O novo já nasce velho. Facebookianos do mundo, uni-vos!

sábado, 26 de novembro de 2011

CTRL V e pensamento crítico

A velha máxima professada em tempos longínquos por Lavoisier que “no mundo nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”, foi ressignificada na sociedade digital do século XXI, e sua melhor expressão se deve à genialidade do Chacrinha: “nada se cria, tudo se copia”. É o imperativo do CTRL C + CTRL V, a lei do menor esforço do pensamento, as pesquisas baseadas no “doutor gooogle”. Há, ao menos, dois aspectos na lógica do CTRL V: o primeiro a questão da recriação, da citação, da agilidade na busca de informações, esta menos sombria. O outro é a do mero ato de copiar e colar, nome do comando CTRL V, colar sem pensar, às vezes sem ler, reproduzir sem criticar, algo muito funesto para o pensamento crítico.

O que se denominou acima pensamento crítico, poderia ser resumido na formação de seres humanos autônomos, dotados de criatividade, capazes de ler, interpretar e criticar as informações que recebem seja no mundo da web, seja em qualquer outra fonte de informação. O antípoda disto é a disseminação do homem medíocre, que não consegue filtrar as informações criticamente, reproduz apenas o que recebe, sentindo-se senhor da verdade (ainda que seja uma verdade alheia a ele), não consegue criar nada apenas copiar de alguém e colar como se tivesse dito tão nobres palavras. Nesta dualidade encontra-se o paradoxo fundamental da geração CTRL V.

Comumente se ouve nas ruas que a geração dos nativos digitais não conseguiu até hoje produzir um grande gênio que esteja fora das teias virtuais. As referências passam a ser a grande maçã de Jobs, que já traz a máxima capitalista no seu sobrenome, ou quem sabe um Bill Gates, que num ato de nobreza decide compartilhar um porcento da sua riqueza em obras de caridade. Na música as referências são... Quem mesmo? Lady Gaga? Bieber? Prefiro ficar gagá e tomar uma bier... Não professo uma visão catastrófica, mas os ídolos e referências da cultura pop estão diretamente ligados à lógica do CTRL V. Os artistas, pensadores e intelectuais, cada vez mais não conseguem a espontaneidade do pensamento criativo, se refugiam no passado, em referências e mais referências, que acabam por diluir a pedra de toque da liberdade: a ruptura com uma estrutura de pensamento e ações pré-estabelecida. Assim o fizeram várias figuras num tempo não muito distante, dos Mutantes a Tom Zé, de Vinicius, Jards Macalé, os irmãos Campos a Arnaldo Antunes. Assim o fez, no ínicio do século XX, Walter Benjamin, filósofo alemão morto precocemente na Segunda Guerra.

Benjamin, bem antes do surgimento da lógica do CTRL V, pautava seus estudos através da citação. Queria escrever uma obra inteira com citações. Mas ele estava longe da idéia da mera cópia passiva e desinteressada. Sua noção de citação significava retirar as ideias de um contexto original, adaptando-as a um novo contexto, colocando-as em diálogo com outra constelação de ideias. E assim, numa linguagem digital, ir linkando dialéticamente ideias diferentes para a construção de um argumento novo. Há aqui pensamento, há criação. É o que Oswald de Andrade buscou, é o movimento antropofágico de devorarmos o velho em nós mesmos para criação do novo. Se o CTRL V significasse este movimento de ideias, aí sim seria um movimento profícuo. Cópia por cópia, o conteúdo se esvai, não cola no cérebro de quem copia. E pior, atrofia cada vez mais este cérebro copiador, preguiçoso, que não sente o ímpeto de se deslocar à procura da criação. Apoiados nos filósofos Oswald e Benjamin, talvez pudéssemos pensar: “Nada se cria, tudo se cita, tudo se absorve, tudo se recria”. Antropofagia do pensamento.

sábado, 19 de novembro de 2011

Palavras, sentimentos e sociedade virtual

Outro dia alguém disse que leu um depoimento que a tornou mais humana... Outra pessoa estava emocionada, ao mesmo tempo que excitada com o mesmo texto, não conseguia conter suas emoções no telefone com o autor. Este, pensava e dizia: que bom que as palavras ainda têm o poder de emocionar as pessoas. Enquanto isto ainda ocorrer, nem tudo está perdido. Estes sentimentos, estas emoções são disparados quando a palavra causa identificação, seja em um sentido de reconhecimento de si através delas, seja no sentido de reconhecimento construtivo da alteridade que representam. Em ambos os sentidos, ou qualquer outro que se imagine, aparece um poder subversivo da palavra: ela pode nos tirar o chão, nos conduzir ao outro, ou ainda mesmo nos dar um chão. A palavra bem colocada, essencialmente é emocionante. Daí nasce a poesia. Nem só razão na leitura dos textos, mas boa dose de coração-leitor. Mas esta palavra que além do racional não se aprende na escola, nem na universidade. Nem nas gramáticas, nem nos cursos-livres, nem em vídeo-aulas, nem em nenhum outro manual. E neste ponto, voltemos a pensar na realidade digital-virtual em que nos inserimos, buscando a ressurreição desta palavra,em meio a este (i)mundo.

No que venho chamando de sociedade virturreal (as fronteiras não são mais palpáveis ou relevantes entre real e virtual) os sentimentos têm se tornado cada vez mais brutos ou brutais. Os relacionamentos, de todas as orientações ou mesmo os desorientados, são fugazes, momentâneos, objetais. O outro é a satisfação do prazer do EU, enquanto ainda satisfaz bem, quando não mais: que venha o próximo. Nesta lógica se despedaçam as capacidades da admiração, do espanto, da surpresa, de sensações corpóreas (frio na barriga), de observação de pequenos detalhes do outro (os apaixonados reparavam até mesmo um cílio que caía do amado). Bom, além da cultura consumista, aliada ao culto de micaretas, funks e similiares, a aceleração do tempo também é um elemento catalisador deste processo.

O poeta Vinicius de Moraes escreveu certa vez: “ando onde há espaço/meu tempo é quando”. Hoje, a paráfrase seria a seguinte :”ando onde não há espaço/ meu tempo é o agora”. Esta cultura do imediatismo, o ritmo acelerado devido à urgência do trabalho, o culto do carpe diem mal compreendido contribui para que as relações tenham se embrutecido, e as capacidades de pensar, admirar, contemplar, poetizar estejam hibernadas na maioria dos seres, humanos e inumanos.

A palavra que emociona, que desperta os sentimentos, vai na contramão de tudo o que é cultivado na sociedade virturreal. Ela choca, expõe o que tenta-se esconder, e seu poder revolucionário está neste escancarar e suspender o instante. Lemos. Respiramos. Uma lágrima tentata escorrer. Pensamos. Nos emocionamos. Pronto. Já não somos os mesmos. E a palavra cumpriu sua melhor potencialidade. A palavra nas entre-linhas, a palavra que emociona, com sua musicalidade interior. Palavra encantada!

sábado, 12 de novembro de 2011

O reino das necessidades desnecessárias

O paradoxo é proposital. Mais do que um paradoxo é uma antítese. Uma provocação. Nossos tempos são os tempos da criação de desejos e necessidades, cada vez mais distantes dos nossos próprios anseios e sonhos. Desejos artificiais, felicidades artificiais e temporárias. E logo precisamos, desejamos, necessitamos, temos que adquirir algo novo que inebriará nossos desejos e saciará nossa felicidade passageira. Não são os tempos vislumbrados por Baudelaire em seus “Paraísos Artificiais”. Criar um paraíso, através da imaginação aguçada, e ter consciencia da artificialidade deste paraíso, ainda assim aproveitar todas suas potencialidades, é bem diferente de cair no reino das necessidades mercadológicas...É o reino das linguagens marketeiras e midiáticas... É a competição liberal elevada à sua mais cruel potência... A evolução tecnológica, e aqui chegamos no plano da sociedade virturreal, tem esta terrível faceta... Regida pela lógica do lucro, cria, cada vez mais necessidades, e tenta manipular desejos, lobotomizar consciências, e revigora um termo já fora de moda, que volta à tona: ideologiza o inconsciente humano...

Não que isto seja uma regra, ou lei geral que regula o funcionamento da sociedade. Não. Sou contra generalizações pseudo-científicas. Trata-se apenas de uma observação, ou um devaneio de um observador desinteressado, incrustado no seio do processo tecno-mercadológico. Deveras pessimista o olhar, hão de bradar os otimistas, profetas das benesses da tecnologia aliada ao mercado. Não se trata disso. A lógica aqui é da boa e velha dialética. Sem um contraponto, a harmonia não se concretiza. E não há como negar que para sua sobrevivência a industria técno (lógica, crática, econômica) precisa de uma expansão ilimitada e de criar desejos. Na linguagem do Marketing, trata-se de identificar necessidades ainda não vislumbradas pelo cliente, criando demandas, antecipando soluções. Mera baboseira. Bullshit, diriam os ingleses, sem termo que expresse melhor. Poder-se-ia traduzir a lógica acima por: manipular os desejos inconscientes, suscitar a necessidade de algo que nunca dantes foi necessário, antever o lucro com estas necessidades num futuro próximo. Lucro, acúmulo, mais lucro. Todas as necessidades que vivemos, além das básicas, estão dentro deste círculo vicioso. E achamos sempre um Iqualquercoisa que precisamos ter, um Celmerdaqualquer que é de última geração Tabletidiota que necessitamos comprar. Aceitamos, sem perceper esta linguagem sedutora, as pessoas bonitas dos comerciais, a tendência da ultima estação, a musica que todo mundo houve. What the fuck, it´s better to be myself than anybody else.

Não quero negar algumas possíveis benesses do mundo virtual. Mas também não quero que as coisas percam sua aura, como ensinou Water Benjamin, muito menos que o modus poeisis de vida se torne obsoleto. E enquanto houver um brado, ainda que solitário que não naturaliza condições historicamente passageiras, a utopia de um futuro diferente, tecno-social, estará em aberto...

sábado, 5 de novembro de 2011

A virtude da insensatez no mundo virturreal

Em meio às teias virtuais que nos envolvem, cada vez mais os comportamentos humanos se tornam padronizados... Não só por aquela velha máxima, minuciosamente elaborada pelos frankfurtianos, da indústria cultural de massa (ou missa?) e do papel alienante (quiçá embriagante) da mídia. As análises de Adorno e Horkheimer, embora brilhantes, se baseavam apenas no embrião daquele monstro social que se desenvolveria nos séculos XX e XXI. Eles não puderam assistir às seguidas revoluções tecno-sociais causadas por celulares, internet, redes sociais, tablets. Nem mesmo o visionário George Orwell poderia sonhar com tão brilhantes ferramentas de comunicação e disseminação de idéias – para o bem e para o mal. Mas este já é outro assunto. Voltemos à padronização da mediocridade.

Em meio à nuvem de informações, digitais, impressas, visuais, auditivas e sensitivas, cada vez menos os seres humanos se individualizam. Talvez por ficarem perdidos nesta maré virtual, navegando à deriva entre as nuvens societárias e as nuvens digitais. Acabam por dissolverem-se em ambas e não se integrarem em nenhuma... Plugam-se nas redes sociais virtuais, que passam a ter estatuto de realidade. E a realidade passa a ter o estatuto de virtualidade. Não se trata de uma mera inversão, mas da suplantação dos limites entre real e virtual. Até mesmo quando chegam em um bar, ambiente de sociabilidade, os jovens fazem um check-in virtual e entram em contato virtual com outros que fizeram o mesmo procedimento. Mas não ousam trocar olhares. Olhares são muito ameaçadores e perigosos. Somente via rede, aí sim piscam, compartilham, podem até mesmo vir a se cutucarem...

Nessa rede em que as fronteiras entre o real e o virtual parecem se extinguir, cada vez menos o extraordinário aparece... As notícias, as piadas, os comportamentos, até mesmo as loucuras passam a ser produzidas em série, dentro do padrão virtual. A capacidade de se diferenciar, a ousadia de pensar, ainda mais a de pensar diferente, a hybris de ultrapassar normas e condutas, parece ter sido engessada... Somente no grupo de amigos virturreais os indivíduos se sentem seguros.

Evoquemos o célebre Erasmo de Roterdam, para fugirmos da mediocridade massiva que pode ser uma funesta conseqüência da nossa realidade virtual. Ode à insensatez, virtude extraordinária. Ode à ousadia. Que sentido tem um mundo de comportamentos previsíveis, de emoções controladas, de possibilidades limitadas. Sentir é um ato, pensar é um fato, escreveu Clarice Lispector. E que fato transgressor. Viva o pensamento insensato!

sábado, 29 de outubro de 2011

Encadeamentos virtuais

Tudo bem que vivamos em mundo que se pretende pós-moderno, tecnológico (tecnocrático?), progressista e desenvolvimentista... Afinal de contas, por mais outsider, não há como negar certas características da nossa era... Mas a questão que fica é: há conciliação entre algum valor humano e a avalanche tecno-modernística que assistimos. Não, a questão é ainda bem maior... Em um mundo em que música se transforma em ruído, em que o sentimento é transmutado em frivolidade e desrespeito, em que a vida virtual se sobrepuja à real, ainda há espaço para valores “antiquados” como o respeito, a solidariedade, a amizade e o amor? Bom, segundo os preceitos tecno-consumistas, possivelmente não.

Amizade, se transforma em networking. Ou seja, o que anteriormente significava cumplicidade e sinceridade, se transmuta em expressão do egoísmo do homus virtualis. Um amigo é um potencial “abridor de portas mercadológicas”. Não é mais aquele com quem se compartilham segredos, mas sim projetos, não mais bebedeiras, mas coffee-breaks. Um amigo deixa de ser um ombro para representar um trampolim. Ele pode te alçar a possibilidades nunca dantes imaginadas...

Quanto ao respeito, parece ter se transformado em coisa de grupóides-humanitários-extremistas. Sim, pois a vida de qualquer ser humano parece ter perdido todos os seus valores (econômicos, éticos ou utilitários). Afinal de contas, ser-humano bom é ser-humano enlatado. Aquele que pode se consumir, após um dia de muitas preocupações trabalhísticas, ou após uma noitada de esbórnea. Melhor seria se esse ser não ousasse se pronunciar, apenas satisfizesse às necessidades do meu eu. Uma gozada é suficiente. Depois se amassa a lata-humana, joga-a na rua e nunca mais a vê. Nada como uma bela noitada para o homus-laboraens. E não só no masculino. A consumibilidade das relações não tem sexo, nem orientação, pelo contrário, é totalmente desorientada.

Solidariedade parece sinônimo de perda de tempo. O outro está ali, deitado, pedindo dinheiro, provavelmente por ser um perdido. Deve ser muito preguiçoso, pois quem quer consegue trabalhar. E o trabalho dignifica o homem. Nobre falácia! Talvez o trabalho dignifique os bolsos do patrão. E ante a miséria alheia, o homus modernus reage com nojo, ou pior, desdém. A miséria, a fome, a penúria, se transformam em paisagem, e assim como os quadros de Renoir em sua sala, não despertam sentimento. Ainda fazem conta de quanto o miserável ganha a cada esmola. E têm suas consciências limpas, pois pagam seus impostos... Uma pena o governo não fazer sua parte.

O amor, por onde anda, em meio a todo esse cenário? Ele se vê dirigido a coisas. Coisificado. Cada vez mais o amor se transfere a bens materiais, ao prodigioso labor. E no acúmulo das coisas, cada vez mais o amor entre os seres humanos se eclipsa. Amar se torna coisa old fashion. Poesia, para quê? Não há tempo, temos de acumular... O quê? Não se sabe... Nem se pergunta... Somente se segue a vida acumulando: títulos, empregos, cifras bancárias, contas, carros, apartamentos, roupas, dinheiro...

Certamente poucas coisas não se acumulam nesse processo do homus mercadológicos: amor, ética, respeito, solidariedade, amizade.