sábado, 21 de julho de 2012

Tropicalismo Antropofágico

O Brasil dos anos 60 vive um universo extremamente conturbado. No lado político vemos o fim do mandato de Juscelino Kubitschek, com sua pretensa modernização do país; vemos também a excêntrica eleição de Jânio Quadros, seguida de sua renúncia; vemos ainda o populismo ressurgir na figura de João Goulart, discípulo de Vargas; e finalmente sua deposição pelos militares, que instauram um regime autoritário, cujo ápice é simbolizado pelo Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968. Tais turbulências no cenário político do país afetaram, certamente, os campos culturais, em especial o autoritarismo militar, atuando como catalisadores de transformações profundas em todos os campos da cultura nacional. Nos ateremos aqui, devido as limitações inerentes ao trabalho, ao campo da música.

A partir de 1958 vemos surgir um movimento musical, encabeçado por João Gilberto, que rejeitando os padrões estéticos e a sensibilidade então predominante na canção brasileira. Um banquinho e um violão, uma aparente tensão entre o cantado e o tocado, entre ritmo e voz, emergem como filhos edipianos do tradicional samba carioca e dos épicos cantores e cantoras do rádio. Tal movimento, consagrado como a bossa nova, teve ainda a agremiação de artistas como Tom Jobim, o poeta Vinícius de Moraes, e a intérprete Nara Leão. Ao longo dos anos 60 vemos surgir, dentro e a partir da bossa nova, um novo estilo, com características próprias. A partir de figuras como Carlos Lyra, Zé Kéti, Baden Powell, Elis Regina, entre outros, vemos a canção, ainda que apegada a certos traços bossanovistas, remodelar sua temática. Se em João Gilberto em seus companheiros vemos aparecerem os temas da zona sul carioca, as garotas de Ipanema e os barquinhos, nesse novo grupo, da Canção de Protesto, os temas ecoados ganham uma dimensão expressamente política. Os novos temas passam pela realidade rural, o sertanejo, as mazelas, o subdesenvolvimento.
Surgem, nesse momento, os CPCs da UNE, visando a produção de uma arte-engajada, compromissada com a política nacional. Muitos dos filhos da bossa-nova se envolvem nessas novas propostas e projetos.

Os anos 60 são ainda o momento em que aparece na cena pública o jovem Glauber Rocha, cineasta cujos impactos na cultura brasileira são tremendos. Aparecem também alguns cantores baianos, um Zé, um Caetano e um Gil, articuladores de algo que se chamou tropicalismo e que é o foco principal dessa reflexão.

O tropicalismo bebeu, certamente, nas fontes inovadoras trazidas por Glauber Rocha em sua produção cinematográfica. Com uma narrativa não-linear, fragmentária, dispersa, encontrada principalmente em Terra em transe, é trazida uma estética inovadora para a cultura brasileira. A obra de Glauber ainda trouxe elementos de uma cultura engajada, de questionamentos existenciais, afinando-se mesmo com os princípios dos modernistas de 22. Alguns tomam Glauber como o inaugurador do pós-modernismo nas terras brasílicas.

Pois bem, se Glauber trouxe questões inéditas à cena cultural brasileira, pode-se afirmar que o tropicalismo dessas se apropriou, chegando mesmo a expandi-las. O movimento, se é que cabe tal denominação, tem início a partir dos encontros de Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em 1967 Caetano e Gil lançam seus primeiros LPs, que continham alguns traços das canções de protesto, mas traziam um virtuosismo poético, traços românticos anunciadores do que estava por se formar.
No mesmo ano, em outubro, os dois compositores participam do III Festival da Música Popular Brasileira. Tal evento, como outros da época, convergia diversas tendências musicais, desde jovem guarda a canção de protesto, e servia de janela para a projeção nacional dos artistas. É nesse festival que podemos encontrar a primeira forma de manifestação pública do tropicalismo. Caetano fica em quarto lugar com Alegria, alegria, e Gil conquista o segundo com Domingo no parque. Mais que as colocações, o impacto de suas apresentações e a significação simbólica dessas, soltam as questões tropicalistas no ar da canção brasileira.

Alegria, alegria foi apresentada ao público por Caetano acompanhado do grupo de rock Beat Boys. Aparecem as guitarras, demonstrando uma nova atitude na MPB que se formava. Os longos cabelos encaracolados e desarrumados de Caetano mostravam indícios da desconstrução e inovação do tropicalismo. Vejamos, pois, os elementos de Alegria, alegria que demonstram essa nova postura na canção brasileira.

Na canção é possível identificarmos a fragmentação, influencia de Glauber, as colagens de referencias estranhas entre si. Assim encontramos crimes, espaçonaves e guerrilhas, bomba e Brigitte Bardot. Além disso, o engajamento político também se manifesta, longe dos extremismos das esquerdas e direitas do período, como nos trechos: sem livros, sem fuzis/sem fome sem telefone/No coração do Brasil. A dúbia referência ao sol nas bancas de revista, aludindo tanto ao astro quanto ao jornal de esquerda simboliza uma proposta mais ampla do tropicalismo. O movimento se pautou por uma recusa, uma aversão a formas pré-estabelecidas, um grande niilismo. Isso se refletiu nas críticas postuladas à época, vindas tanto da esquerda, quanto do regime autoritário militar.
A grande inovação e contribuição questionadora do tropicalismo talvez se encontre exatamente nessa postura em suspensão, alheia a tendências, sem cair numa alienação. Reelaborando o antropofagismo modernista de Oswald e Mario de Andrade, aparecem na canção a coca-cola, as espaçonaves, num movimento de absorção do estrangeiro e recriação dos moldes nacionais.

O movimento se desenvolveu, englobando os Mutantes e sua psicodelia lisérgica, Gilberto Gil e suas canções alterando entre o regionalismo romântico e a critica engajada, e o concretismo de Tom Zé. Veio o interminável ano de 1968, e com ele a repressão e censura às canções dos tropicalistas. Gil e Caetano acabam por partir para o exílio. Certamente, a partir de tal instante, o tropicalismo transmutara-se, não mais continha a agremiação de tendências culturais e a explosão inovadora que proporcionara. Talvez seja mesmo esse o destino daqueles movimentos que suspendem o estabelecido, agregam tendências, ou mesmo da pós-modernidade, desfazer-se, ser nada mais que um instante. No fundo o tropicalismo se tratou exatamente disso, de um presente perpétuo, um eterno caminhar, que nesse movimento, paradoxalmente, produz seu próprio descaminho, desligando-se do presente.

A essência de originalidade pode até se desfazer, mas os personagens continuam em cena. E novos também aparecem. A renovação cultural trazida pelo tropicalismo trouxe uma explosão de novas manifestações da canção brasileira. Essa canção busca entoar as questões de sua volta, como um arauto dos anseios dos josés, joãos e marias brasileiros. E nesse contexto, vemos Selvagem, dos Paralamas do Sucesso, reatualizar, em 1986 algumas questões tropicalistas.
Os novos personagens, transgredindo as forteiras do urbano/rural, público/privado são apresentados: a polícia, o governo, a cidade, os meninos, os mendigos, os negros. E esses, por sua vez, mostram suas armas, fazem-se ouvir nesse imenso barril de pólvora chamado Brasil.

Se pensarmos em nosso contexto atual, apesar de imperar uma pretensa democracia, ainda os ideais da geração tropicalista, e da geração dos 80, são suprimidos por um cenário consumista e opressor. Apresentemos, pois, nossas armas. Superemos a futilidade e inutilidade da cultura midiática, e realizaemos a operação antropofágica, recuperando os valores e princípios maiores de nossa cultura. Não mais nos espantemos do grande monstro a se criar. Comamos, pois, o monstro antes que ele nos coma. Resta ainda a esperança de vermos a aspiração do perpétuo presente tropicalista, da grande colagem cultural se manifestar diante dos tortuosos caminhos que se mostram.

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